quinta-feira, 30 de outubro de 2014

"A Chuva Antes de Cair", de Jonathan Coe

Quando a crítica considera determinado livro uma "obra-prima" o leitor pode ficar desde logo condicionado pelas elevadas expectativas com que inicia a leitura. Por vezes, os livros aplaudidos pela crítica literária falham em chegar ao leitor comum, não provocando mais do que desinteresse ou irritação quando a leitura não avança ou é obstruída por uma aura de genialidade que simplesmente não é revelada com facilidade ao leitor comum.

No entanto, "A Chuva Antes de Cair" é uma dessas exceções, uma obra tão simples na sua escrita (e tradução), mas tão prenhe de significado, que arrepia, comove, emociona e deixa-nos a alma cheia de um tipo muito específico de contentamento que só o leitor compulsivo conhece.

Quantas realidades encerra uma fotografia? Quão verdadeiro é um sorriso quando esboçado para uma câmara? É possível olhar para uma fotografia décadas depois de ter sido tirada e reconstituir com precisão aquele instante? Ou estamos condenados a olhar o passado com os olhos da memória, construída e preservada por interpretações e sensações tão pessoais e intransmissíveis, que só nos permitem recuperar uma de muitas versões possíveis? Até que por vezes o real não é que o existe efetivamente e que é reconhecido por todos, mas antes aquilo que ara nós contém a verdade, a nossa verdade.

Vinte fotografias que nos vão sendo descritas, capítulo após capítulo, como se de um filme se tratasse. Com vestígios de história oral, o enredo vai sendo construído numa progressão cronológica e de tal forma o método utilizado pelo autor é bem sucedido que em alturas é possível ouvir a voz da narradora na nossa cabeça, como se tivéssemos sido nós a encontrar aquelas cassetes e estivéssemos confortavelmente sentados a ouvi-las, e não a virar compulsivamente as páginas na expectativa de descortinar todo o mistério em torno de Imogen, essa criança-mistério, rodeada de expectativa e redenção.

Este é um livro sobre a relação perversa que pode por vezes existir entre mães e filhas, pois nem sempre esse vínculo mítico se forja com naturalidade. É uma história de perdas sucessivas, de carências gritantes, de rancores viscerais e de trágicas escolhas. É também um testemunho da fatalidade da vida, uma lembrança de que nem sempre nos é possível controlar o que acontece nas nossas vidas, mesmo que o que se abata sobre nós decorra diretamente de erros de julgamento ou de decisões imprudentes. É também uma lembrança de que todos nós precisamos de nos sentir amados desde o dia em que nascemos, pois uma criança que cresce em profunda carência afetiva, enraíza dentro de si um sentimento de solidão e abandono que a irão marcar inexoravelmente para o resto da vida.

A sinopse é quanto basta para enquadrar o enredo: tudo o mais que se possa dizer sobre Rosamond, Beatrix ou Imogen é retirar a aura de mistério que paira sobre toda a narrativa e que envolve o leitor numa leitura compulsiva e inesquecível.

Quem optar por não ler este livro, pelo menos que fique a conhecer uma das passagens mais marcantes e que explicam um título que parece desadequado fora do contexto:

" ... «Claro que a chuva antes de cair não existe», disse ela. «E é por isso que é o meu tipo preferido de chuva. Uma coisa pode não ser real e, mesmo assim, pode fazer uma pessoa feliz, não pode?». Depois, correu para a água, com um sorriso arreganhado, deliciada com a imprudente vitória de uma lógica que era só sua", p. 133.

✰✰✰✰✰ (5 em 5)

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