quarta-feira, 19 de novembro de 2014

"Peripécias do Coração", de Julia Quinn


Peripécias do Coração é o segundo volume da série Bridgerton, de Julia Quinn. Mais uma vez, o único reparo a fazer é relativo à tradução do título, que em nada se assemelha ao original, que é muito mais adequado: The Viscount Who Loved Me

Iniciei a leitura sabendo mais ou menos o que esperar - uma história tão boa ou melhor do que a de Daphne e Simon, as personagens centrais de Crónica de Paixões e Caprichos (Série Bridgerton - Volume I).
As minhas expectativas não foram defraudadas e começo a ter a sensação de que todas as opiniões sobre esta série (que pela lógica deverá ser composta por oito volumes, um por cada irmão Bridgerton) serão muito semelhantes e favoráveis.

Entrar no universo dos Bridgerton começa a ser como regressar a um lugar familiar e reconfortante. Nesta história cruzam-se os destinos do libertino visconde Anthony Bridgerton (o irmão mais velho) e da destemida e inconvencional Kate Sheffield.
Mulherengo e adepto da boa vida, Anthony decidiu que é finalmente altura de assentar e não há melhor sítio para encontrar uma esposa adequada do que os bailes onde as jovens solteiras são apresentadas à sociedade. Por seu lado, as irmãs Sheffield precisam de fazer bons casamentos, que assegurem financeiramente os seus futuros. Das duas,  é Edwina (a mais nova e mais requisitada) que representa o ideal de beleza e perfeição femininas, o que faz dela a jovem mais requisitada da temporada.

Anthony não é exceção e também ele considera Edwina a "joia" da temporada. Esta Sheffield é a candidata perfeita a futura esposa: uma mulher doce, educada e recatada. Além disso, é lindíssima e só um tolo não a cobiçaria. No entanto, Edwina tem outra coisa a seu favor, da qual ninguém (muito menos as Sheffield) desconfia: Anthony sabe que nunca se apaixonará por esta mulher, que não lhe desperta qualquer sentimento além do respeito e da simpatia.

Kate está determinada em encontrar o marido ideal para Edwina, que anunciou a toda a alta sociedade londrina que não se casará sem a aprovação da irmã. No entanto, Kate já tomou uma decisão inabalável: todos os pretendentes serão considerados exceto o mulherengo e libertino visconde Bridgerton, do qual tem a pior das impressões.

Cedo deduzimos que Anthony e Kate estão destinados a ficar juntos, e parece-me que a intenção da autora nunca foi guardar este segredo do leitor.
Outros segredos (especialmente os que atormentam ambos os jovens desde a infância) vão sendo revelados ao longo da história, mas o que nos envolve mais uma vez é a atmosfera recriada por Julia Quinn, cuja escrita nos transporta com extrema facilidade para a Inglaterra do século XIX.
Página a página, volume a volume, os irmãos Bridgerton conquistam um lugar cada vez mais firme no nosso coração, ao ponto de haver momentos durante a leitura em que sentimos que eles fazem mesmo parte da nossa família. E de certa forma fazem, porque todos nós vamos adotando, aqui e ali, as personagens literárias que mais nos emocionaram e com as quais mais nos identificamos.

✰✰✰✰✰ (5 em 5)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

"As Horas", de Michael Cunningham

A história de Michael Cunningham valeu dois Globos de Ouro nas categorias de Melhor Filme de Drama e Melhor Atriz (Nicole Kidman). Nunca vi o filme na expectativa de ler o livro, por isso não tinha nenhuma ideia pré-concebida acerca das personagens e do enredo.

É por demais sabido que Virginia Woolf é central n'As Horas, ficando a sensação de que esta é acima de tudo uma homenagem à escritora britânica e às suas lutas interiores, que a levaram ao suicídio, reconstituído no início deste livro.

Diagnosticada à distância como maníaco-depressiva, foi provavelmente essa natureza distorcida, neurótica e insana que inspirou Woolf a escrever as suas obras, entre as quais Mrs Dalloway, um dos elos de ligação entre todas as personagens:

- nos anos 20, a própria Virginia Woolf durante o tempo que esteve em reclusão em Richmond, nas primeiras horas em que começa a escrever Mrs Dalloway;
- no final dos anos 40, Laura Brown, uma dona de casa e mãe a tempo inteiro, casada com um herói da II Guerra, muito mais interessada em ler Mrs Dalloway do que em desempenhar os seus "deveres" domésticos;
- no final dos anos 90, Clarissa Vaughan, que partilha com a personagem do livro de Virginia Woolf o primeiro nome - Clarissa - e que é apelidada por Richard, um premiado poeta moribundo a quem está irremediavelmente ligada desde a juventude, de "Mrs. D", numa clara alusão à personagem de Mrs Dalloway.

O livro de Cunningham desenvolve-se em torno destes eixos, sendo postos em evidência temas como a bissexualidade e a homossexualidade (o autor é homossexual assumido) e a doença mental (a ideia de suicídio está sempre presente ao longo de toda a narrativa).

Além de só termos acesso ao que ocorre durante as horas de um único dia na vida destas personagens (à semelhança do livro de Virginia Woolf), Cunningham mimetiza o estilo literário utilizado por Woolf em Mrs Dalloway, o fluxo de consciência. É através da descrição dos pensamentos das personagens (que decorrem das suas impressões imediatas e não filtradas do real. ou do que para elas é naquele momento, naquela hora precisa, a realidade), que nos vamos apercebendo da ideia geral por detrás d'As Horas, e que pode ser resumida na seguinte citação (que considero ser uma das reflexões mais inquietantes que li nos últimos anos), retirada da página 221 do livro:


"Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos, embora todos, exceto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis".

 

 

Foi esta frase de Cunningham que me obrigou a repensar tudo o que tinha lido até então, numa altura em que já tinha dado praticamente como perdido grande parte do tempo dispensado à leitura. Porque de facto este é um livro com uma densidade fora do normal, que exige do leitor um tipo de sensibilidade literária que não está ao alcance de qualquer um. De certa forma não estava ao meu alcance, razão pela qual fui lendo interpretações de ambas as obras - de Cunningham e de Woolf - numa tentativa de compreender o melhor possível o que ia lendo.

Este foi um livro que me custou muito ler e lembro-me de ir na página 50 quando lancei num fórum literário a seguinte pergunta: "sou só eu que não gosto do livro As Horas"? Curiosamente a maior parte das pessoas respondeu que tinha gostado muito mais do filme; muitas delas nem acabaram de ler o livro, e as que o fizeram não o recomendavam, tendo feito várias sugestões de leitura de outras obras do autor. Não desisti por teimosia - o livro não era assim tão grande.. ainda bem que acabei, porque a citação acima foi retirada da penúltima página e considero-a uma das coisas mais interessantes que li até hoje. Há livros assim, que nos transcendem e nos atropelam, quer gostemos deles ou não.

✰✰ (2 em 5)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

"A Cúpula: Livros I e II", de Stephen King

Comprei A Cúpula por impulso. Não lia Stephen King desde a minha adolescência, durante a qual devorei tudo o que eram livros de terror ou de ficção científica. Desde então, os meus gostos literários foram-se diversificando e o receio de já não me identificar com este tipo de ficção especulativa e alternativa fez com que fosse adiando a leitura destes livros, que foram ficando na estante, mês após mês. No entanto, com críticas tão unânimes, e a recorrente afirmação de que a história incidia mais sobre os comportamentos humanos do que a ficção científica propriamente dita, decidi que estava na altura de vencer o "preconceito".
E ainda bem que o fiz: A Cúpula é uma das melhores história de que me lembro de ter lido.

Na contra-capa somos alertados pelo New York Times de que «por mais difícil que seja pegar neste livro, é ainda mais difícil pousá-lo.»
Não podia estar mais de acordo. Os capítulos iniciais atingem-nos como um corpo estranho, pois ainda não estamos formatados para a ideia d'A Cúpula. No nosso imaginário dificilmente cabe uma realidade semelhante aquela que é criada por Stephen King: sabemos de senso comum que  não caem do céu cúpulas que isolam cidades do resto do mundo através de um campo de forças invisível e inexplicável. Simplesmente isso não acontece. No entanto, é exatamente isso que sucede em Chester Mill, uma pequena cidade do Maine (EUA). Num típico dia de Outono, igual a qualquer outro, há um avião que explode, partes de corpos que são decepadas, famílias que são separadas e acidentes rodoviários inexplicáveis. Ergue-se uma barreira entre Chester Mill e o resto do mundo, surge uma redoma transparente que cerca tudo e todos, e que vai transformar para sempre o quotidiano daquela pacífica comunidade.


Embora seja a ideia da cúpula que esteja no centro da história, na realidade é a forma como os habitantes reagem a esta nova circunstância que nos fascina durante as quase 1000 páginas que compõem este romance.
De um lado temos Dale Barbara (Barbie), um veterano da guerra contra o Iraque, que atualmente é um simples cozinheiro no restaurante Sweetbriar, e Julia Shumway, a diretora do jornal local; do outro, Big Jim Rennie, um político local em plena ascensão de poder e com uma ambição desmedida, e o seu filho, Junior Rennie, um rapaz belicoso e violento, mas sobretudo doente e desligado da realidade. Estas quatro personagens vão estar em confronto durante toda a história: Barbie e os seus apoiantes representam o bem e o que de melhor pode emergir do ser humanos em situações extremas, enquanto Big Jim é a encarnação do próprio mal, a prova de que a cegueira provocada pela sede do poder pode facilmente, e em situações limite, levar o homem a praticar atos bárbaros e tiranos.

Como afirma o crítico do New York Times, é difícil pegar neste livro, mas assim que ultrapassamos a resistência inicial, a ideia da cúpula torna-se irresistível. Simplesmente temos que saber se Chester Mill sobrevive ou não a este fenómeno inexplicável, que obviamente se vai revelando cada vez mais alienígena. Houve alturas em que senti que era um habitante de Chester Mill, quando na realidade não passava de uma leitora ansiosa por chegar ao fim de mais um capítulo.
Essa é a grande capacidade de Stephen King, considerado o mestre do suspense: deixar-nos permanentemente num estado de ansiedade que só pode ser apaziguado se progredirmos na leitura. As descrições são tão vividas, a atmosfera é tão verosímil e as sensações evocadas tão reconhecíveis, que facilmente nos embrenhamos no drama épico que envolve aquela comunidade: tomamos partidos, ficamos angustiados, tomamos como nossas as dores daquelas gentes e conseguimos perfeitamente imaginar como nos sentiríamos debaixo de uma improvável cúpula, separados do resto do mundo, sem escapatória.

Dividido em dois volumes por opção da editora, A Cúpula é um livro excelente, mas acima de tudo é uma história absolutamente fantástica, imperdível, saída da imaginação de um escritor que tem o talento invulgar de moldar o tempo e o espaço a seu bel-prazer, criando cenários que preenchem por completo as medidas da nossa imaginação.

Por fim, acrescento que a resolução do mistério por detrás da cúpula não é espetacular; não dececiona, mas também não deslumbra. O prazer deste livro está na própria leitura, no ato de ir descobrindo, página após página, os desenvolvimentos da história. Claro que queremos saber o que originou a cúpula, como é que ela apareceu e como é que ela desapareceu, mas só nos lembramos disso quando estamos mesmo a chegar ao fim e já não nos resta mais que saber sobre todos os habitantes de Chester Mill.
Ler depois d'A Cúpula é uma tarefa difícil!

✰✰✰✰✰ (5 em 5)