terça-feira, 11 de novembro de 2014

"As Horas", de Michael Cunningham

A história de Michael Cunningham valeu dois Globos de Ouro nas categorias de Melhor Filme de Drama e Melhor Atriz (Nicole Kidman). Nunca vi o filme na expectativa de ler o livro, por isso não tinha nenhuma ideia pré-concebida acerca das personagens e do enredo.

É por demais sabido que Virginia Woolf é central n'As Horas, ficando a sensação de que esta é acima de tudo uma homenagem à escritora britânica e às suas lutas interiores, que a levaram ao suicídio, reconstituído no início deste livro.

Diagnosticada à distância como maníaco-depressiva, foi provavelmente essa natureza distorcida, neurótica e insana que inspirou Woolf a escrever as suas obras, entre as quais Mrs Dalloway, um dos elos de ligação entre todas as personagens:

- nos anos 20, a própria Virginia Woolf durante o tempo que esteve em reclusão em Richmond, nas primeiras horas em que começa a escrever Mrs Dalloway;
- no final dos anos 40, Laura Brown, uma dona de casa e mãe a tempo inteiro, casada com um herói da II Guerra, muito mais interessada em ler Mrs Dalloway do que em desempenhar os seus "deveres" domésticos;
- no final dos anos 90, Clarissa Vaughan, que partilha com a personagem do livro de Virginia Woolf o primeiro nome - Clarissa - e que é apelidada por Richard, um premiado poeta moribundo a quem está irremediavelmente ligada desde a juventude, de "Mrs. D", numa clara alusão à personagem de Mrs Dalloway.

O livro de Cunningham desenvolve-se em torno destes eixos, sendo postos em evidência temas como a bissexualidade e a homossexualidade (o autor é homossexual assumido) e a doença mental (a ideia de suicídio está sempre presente ao longo de toda a narrativa).

Além de só termos acesso ao que ocorre durante as horas de um único dia na vida destas personagens (à semelhança do livro de Virginia Woolf), Cunningham mimetiza o estilo literário utilizado por Woolf em Mrs Dalloway, o fluxo de consciência. É através da descrição dos pensamentos das personagens (que decorrem das suas impressões imediatas e não filtradas do real. ou do que para elas é naquele momento, naquela hora precisa, a realidade), que nos vamos apercebendo da ideia geral por detrás d'As Horas, e que pode ser resumida na seguinte citação (que considero ser uma das reflexões mais inquietantes que li nos últimos anos), retirada da página 221 do livro:


"Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos, embora todos, exceto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis".

 

 

Foi esta frase de Cunningham que me obrigou a repensar tudo o que tinha lido até então, numa altura em que já tinha dado praticamente como perdido grande parte do tempo dispensado à leitura. Porque de facto este é um livro com uma densidade fora do normal, que exige do leitor um tipo de sensibilidade literária que não está ao alcance de qualquer um. De certa forma não estava ao meu alcance, razão pela qual fui lendo interpretações de ambas as obras - de Cunningham e de Woolf - numa tentativa de compreender o melhor possível o que ia lendo.

Este foi um livro que me custou muito ler e lembro-me de ir na página 50 quando lancei num fórum literário a seguinte pergunta: "sou só eu que não gosto do livro As Horas"? Curiosamente a maior parte das pessoas respondeu que tinha gostado muito mais do filme; muitas delas nem acabaram de ler o livro, e as que o fizeram não o recomendavam, tendo feito várias sugestões de leitura de outras obras do autor. Não desisti por teimosia - o livro não era assim tão grande.. ainda bem que acabei, porque a citação acima foi retirada da penúltima página e considero-a uma das coisas mais interessantes que li até hoje. Há livros assim, que nos transcendem e nos atropelam, quer gostemos deles ou não.

✰✰ (2 em 5)

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